A rotina da fome

Em Manaus, moradores catam restos do comércio para sobreviver e tentam complementar refeições com doações

Rosiene Carvalho (texto) e Nathalie Brasil (fotos) Colaboração para o UOL, em Manaus Nathalie Brasil/UOL

É na lixeira da Manaus Moderna, principal ponto de abastecimento da capital do Amazonas, que Maria Elias Pereira, 49, trabalha 15 horas por dia. Ela luta duro para sobreviver nas 24 horas seguintes, sob um sol e odores fortes.

Maria cata o descarte dos comerciantes e entende que a vida, que sempre lhe foi difícil, piorou com a pandemia. A fome virou parte da rotina.

Para garantir ao menos R$ 54 para o aluguel e duas refeições diárias de PF na feira, chega às 4h e sai às 19h. Se ainda assim não conseguir, fica sem comer.

Segundo a Secretaria Municipal de Mercados e Feiras, na Manaus Moderna, localizada à margem do rio Negro e onde Maria revira o lixo para ganhar a vida, circulam cerca de 50 mil pessoas e 300 mil toneladas de alimentos por dia.

Uma caixa cheia de verduras, que Maria limpa com uma toalha pendurada no ombro, vale até R$ 20. Diminuíram os interessados nos últimos meses, segundo ela, mas há quem compre para jogar aos porcos, outros para cozinhar.

"É muito ruim, ó. Tem dia que não tenho dinheiro nem para comprar meu café. Aquele lá de cima é muito bom. Quando acordo, me ajoelho e começo a orar. Quando venho para cá, venho pela rua pedindo que ele me abra portas", diz.

O pior da fome ocorreu na primeira onda de infecções por covid em Manaus, em abril do ano passado. Maria Elias conta que pegou a doença, mas não podia deixar de trabalhar. "Quase que eu morria aqui nessa beira [do rio]. Tinha tontura. Meu aluguel já estava R$ 120."

Apesar do sufoco, diz que não tomou nem vai tomar a vacina e caçoa de quem já se imunizou: "Vai virar jacaré. Não tenho medo de injeção, mas não quero tomar essa. Confio naquele lá de cima. Dá para confiar no que o presidente [Jair Bolsonaro] falou. Eu não vou tomar e já disse para a minha filha no interior não tomar", afirmou, repetindo palavras erradas de Bolsonaro e ignorando o jeito mais eficaz de evitar a forma grave da covid.

A vacinação é a principal maneira de se proteger da covid. Todos precisam se vacinar, inclusive quem já teve a doença. Não é uma garantia de que a pessoa não vai se contaminar, mas reduz as chances de hospitalização e morte. Também não dispensa outros cuidados, como evitar aglomerações, utilizar máscara, preferir ambientes ventilados e higienizar as mãos.

Ao lado dela, a agricultora Edna Pereira Bahia, 65, mostra alegre a sacola cheia de cebolas e berinjela às 11h. Há menos de um ano, ela tirava R$ 2.000 por mês vendendo nessa mesma feira o que colhia em um terreno em Iranduba (a 20 km de Manaus).

Até que sua casa foi levada pela enchente histórica que assolou os amazonenses, na mesma época do colapso do sistema de saúde pelo coronavírus. O governo do estado investiu R$ 97 milhões para minimizar os efeitos da enchente, R$ 30 milhões deles só em auxílio direto aos atingidos. Mas Edna se queixa de não estar entre os beneficiados.

Nunca precisei de doação. Nunca dependi de ninguém, toda minha vida eu trabalhava. Plantava e pescava. Minha geladeira era farta."

Viúva e desempregada, Camila Anne de Oliveira, 23, circula pelos corredores do Feirão da Sepror, ponto de vendas de produtores de quarta a domingo na zona norte da capital.

Ela vai de banca em banca, pedindo doações na hora da "xepa", seguida pelos filhos de 9 e 4 anos e carregando o terceiro na barriga, com oito meses.

"Desde que meu marido morreu, faltou comida e eu não tenho como trabalhar. Recebo maxixe e banana quase estragados. Separo, corto e aproveito. Comemos três, quatro dias. Pego doação num sopão do bairro também", disse.

A cada semana aumenta o número de pessoas da fila de distribuição de alimentos, sopas e ossos promovida por um grupo de voluntários da própria comunidade.

Mãe de três filhos, Michele Figueiredo Bastos, 41, está desempregada e é uma das primeiras a chegar. "Levo a minha sopa e, se eu tiver macarrão, ponho um pouco para aumentar para os outros dias", relata.

Já faltou comida a ponto de eu pegar três ovos com farinha e dar para meus filhos comerem, pegar só uma colher para mim e mentir para eles que eu estava cheia. Passar fome é dor, é uma porrada. A dor passa, a fome não. Ela remói. Uma dor que agonia. Sei o que é."

Michele diz que os últimos meses têm sido incertos. "Eu faço faxina, lavo uma louça, peço um prato de comida. Assim vou vivendo. Mas não preciso roubar nem me prostituir", afirmou.

Na distribuição de sopa do dia 18, o agricultor Emanuel Feitosa Gomes, 62, tinha dividido três salsichas e três ovos com duas filhas desempregadas e quatro netos. A panela de sopa ia salvar a janta, segundo ele. Ver os netos com fome é a maior agonia.

"Quando a gente almoça, ninguém janta. Quando janta, ninguém almoça. Quando vejo meus netos com fome, procuro dar um jeito, junto latinha para vender. Não dá para ficar sossegado", disse. Em outro bairro, ele também vai diariamente para tentar outra distribuição de sopa.

Rocicleide Melo de Souza, 45, afirma que, com frequência, suas panelas estão vazias. O marido está doente e não consegue trabalhar. "Já chorei muito. Tenho depressão. A gente se sente humilhado com fome", diz.

A líder comunitária Raimunda Jardim da Costa fundou o sopão em janeiro deste ano, ao perceber a necessidade na vizinhança. "Tinha um ponto para bar, mas conversei com minhas pastoras e resolvemos fundar esta sopa. Também estava com dificuldades. Sem dinheiro no bolso. Confio em Deus e ele nunca e faltou. Até meu marido voltou a trabalhar", disse.

A prefeitura tem uma estrutura a poucos metros dali para oferecer refeição às pessoas. Mas está fechada há meses por pendências na documentação. De acordo com a Secretaria Municipal da Mulher, Assistência Social e Cidadania, essa estrutura vai oferecer 200 refeições diárias no horário de almoço. A prefeitura disse ter distribuído 250 mil refeições no primeiro semestre pelos bairros da cidade.

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